Por que não sou marxista

Para alguns, o título remeterá ao clássico de Bertrand Russel, Por que não sou cristão. Outros acreditarão que capitulei frente ao zeitgheist nacional, em que termos falaciosos como “marxismo cultural” e “doutrinação ideológica” emergem das latrinas cerebrais de nossos governantes. Ambos anteciparão de forma errada o conteúdo, embora os primeiros contem com minha simpatia.

Farei, portanto, uma profissão de fé. Acredito na igualdade entre todos os homens. Parafraseando Nelson Mandela, sou simpático à ideia de uma sociedade sem classes, abomino a exploração dos pobres pelos abastados. Posiciono-me a favor das minorias, execro o racismo, sexismo e homofobia que vigoram (sim!) em nosso país. Estou convicto de que é função do Estado taxar os mais ricos para oferecer o bem-estar social a todos. Isso significa saúde, educação e serviços básicos. Estas pautas são convencionalmente chamadas “de esquerda”, em alusão ao local onde tomavam assento no parlamento da França os partidários da revolução (sentando os monarquistas à direita). E a tal “esquerda” tem sido continuamente achincalhada pelas milícias digitais.

Ainda assim – e aqui ecoo novamente o líder sul-africano – não posso concordar com qualquer autoritarismo, e com os chamados “sacrifícios” (que incluem o fim da liberdade de expressão, os “assassinatos necessários” e a manipulação da verdade) realizados em prol da coletividade. Até porque a história recente demonstrou que os sacrificados foram muitas vezes numericamente superiores àqueles beneficiados pela ditadura do proletariado.

A Lógica da Descoberta Científica, de Karl Popper, me convenceu de que a crítica permanente é a chave do progresso da ciência. Mesmo que eu não endosse totalmente a teoria política popperiana (exposta principalmente em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos), aceito sua desconfiança do historicismo, ou seja, de que é possível prever uma evolução social e política a partir da análise do passado.

Great men make great mistakes- argumentou seriamente Popper – ainda que esses grandes homens se chamem Platão, Marx e (por que não?) Cristo ou Freud. Portanto, repudio qualquer forma de governo que não admita a crítica e renovação permanentes.

Alguns argumentarão, corretamente, que Popper progrediu paulatinamente de um Marxismo juvenil a uma posição que justificava práticas selvagens de imperialismo e capitalismo. Aproximou-se perigosamente de Friedrich Hayek, cujas ideias econômicas ultraliberais e agressivo anticomunismo produziram delírios como elogiar o governo Pinochet.

É tudo verdade, e tudo fruto do pensamento polarizado que caracterizou a Guerra Fria.

Costumo me posicionar como um “popperiano de esquerda”. Mantenho a crença na virtude de uma rede de críticas mútuas como força motriz do progresso social, político e científico. Como cientista, não esqueço que, se o negacionismo climático e terraplanismo se espalham na margem direita da política, a ortodoxia soviética produziu a genética engajada e pseudocientífica de Lysenko, para quem a teoria da evolução e a herança mendeliana pareciam muito “burguesas”. Somente um regime democrático permite críticas, e evita o nascimento de tais monstruosidades.

Minha sensibilidade social apela para o intervencionismo econômico estatal proposto por Keynes, para o estado de bem-estar social ( welfare state ) de matiz Beveridgeana, para as ações afirmativas (como quotas na universidade) e para a tolerância racial, religiosa e de gênero. Em termos práticos, sempre votei (com uma dose de ceticismo) em candidatos que mais se aproximavam do meu modo de pensar. Não acredito em heróis, nem em salvadores da pátria. A sério, desconfio profundamente do patriotismo, que atribui um valor humano diferente àqueles que nascem do outro lado da fronteira. Que dizer, aliás, de um país em que patriotas batem continência à réplica da

Estátua da Liberdade em uma loja de departamentos?

Não é eticamente justificável a neutralidade política, e creio que o leitor adivinhará minha posição nos últimos embates eleitorais. Ao contrário do presidente, considero os partidos políticos instituições importantes. Porém nunca comunguei completamente – até agora – com nenhum estatuto partidário. Como médico, meu verdadeiro partido é o Sistema Único de Saúde (SUS). Como professor e pesquisador, a universidade pública e gratuita. Ambas as instituições se encontram sob ataque, portanto ocupo o lugar que me cabe nas trincheiras.

Em um momento de marketing de falsidades (“aparelhamento de esquerda das universidades”), conceitos pseudo-éticos (“meritocracia”) e profundo maniqueísmo ideológico, acho importante evitar o que Leonardo Sakamoto chamou de “raciocínio binário”. Não falo de posição “de centro” (eufemismo para direita menos conservadora).

Professo a erradicação da fome, saúde e educação para todos, políticas públicas inclusivas e uma segurança policial que seja ao mesmo tempo preventiva e terapêutica.

As obras de Marx – em muitos casos lúcidas – devem ser lidas. Assim como Adam Smith, Hayek e Keynes. Assim como a Bíblia, o Alcorão e os Upanixades. Como o vinho e a vodca, tudo consumido com moderação. A utopia social deve ser a igualdade, conquistada com o mínimo de repressão. O senso crítico deve ser o leme da vida política.

Em coerência com meus princípios, honrarei popperianamente aqueles que apresentarem críticas a este texto. If you are wrong, you are right, diz uma frase atribuída ao criador do “racionalismo crítico”. Admito com prazer ser refutado. Até que me refutem, mantenho a minha (flexível) profissão de fé.

 

Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza

 

Sobre Fernando Bruder

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