Dimas Ramalho: Consórcios intermunicipais devem seguir a lei; licitações compartilhadas trazem benefícios coletivos

A Nova Lei de Licitações (lei nº 14.133/2021) representa um marco na busca por maior modernização e eficiência na gestão pública brasileira. Entre os instrumentos previstos na nova legislação, destaca-se a possibilidade de certames compartilhados, incluindo aqueles realizados por meio do Sistema de Registro de Preços. Tal ferramenta, quando corretamente aplicada, pode ampliar o poder de compra dos municípios, gerar economia de escala, promover ganho de expertise técnica, uniformização de equipamentos e serviços, melhor planejamento e redução de custos, além de conferir celeridade às contratações.

Contudo, a análise de casos que agora começam a chegar ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo revela um cenário preocupante em relação à forma de condução desses processos de compras. Em especial, chama a atenção o número crescente de editais lançados por consórcios, com valores e volumes expressivos, sem o cumprimento de etapas essenciais da fase de preparação.

Os indícios de irregularidades são consistentes. Em diversos casos, verifica-se, por exemplo, a ausência da fase do procedimento público de intenção de registro de preços, exigido pelo artigo 86 do diploma. Essa etapa, obrigatória na fase preparatória, tem como objetivo assegurar a transparência, permitir a adesão de outros órgãos interessados e garantir uma estimativa realista e fundamentada das quantidades a serem contratadas. Essa omissão compromete a lisura do certame desde sua origem.

Além disso, em alguns processos, nem sequer há documentos que formalizem as demandas de cada ente consorciado, o que levanta dúvidas sobre a real necessidade das aquisições previstas. Também foram identificadas inconsistências na caracterização do interesse público, ausência de memórias de cálculo que fundamentem as estimativas de consumo e inexistência de manifestação técnica quanto à adequação das aquisições propostas.

Essas fragilidades evidenciam falhas graves na estruturação das licitações e apontam para um risco real de vícios insanáveis que podem ensejar a anulação dos certames. Vale lembrar que a fase de planejamento é a espinha dorsal de toda licitação. É nela que se definem as reais necessidades da administração, a viabilidade da contratação e a compatibilidade entre o objeto pretendido e os recursos disponíveis.

É importante frisar que o tribunal de contas reconhece os méritos e as vantagens das concorrências públicas compartilhadas por consórcios, sobretudo em contextos de escassez de recursos e limitações estruturais enfrentadas por pequenos municípios. No entanto, esses benefícios não isentam os gestores do cumprimento rigoroso das exigências legais. A legalidade, a motivação dos atos administrativos e a transparência são inegociáveis em qualquer modalidade de compra pública.

Diante do cenário identificado, é recomendável que o tema passe a ser elemento de atenção especial nas fiscalizações ordinárias realizadas junto às associações intermunicipais, com base em critérios técnicos de seletividade e amostragem. O controle externo deve exercer um papel pedagógico, como prevê o artigo 173 da Nova Lei de Licitações, orientando os responsáveis sobre as boas práticas previstas na norma, mas também atuando com firmeza quando a legalidade for desrespeitada.

Recordo aos prefeitos, enquanto dirigentes dessas associações municipais, a possibilidade de serem apenados diretamente pelo Tribunal de Contas, inclusive com potenciais reflexos na sua inelegibilidade futura, uma vez que, ao contrário das contas anuais, o julgamento não depende da atuação do Legislativo local.

Redobra-se, portanto, a importância de uma correta aplicação da Lei nº 14.133/21 que exige mais do que familiaridade com seus dispositivos –requer planejamento técnico qualificado, respeito aos princípios que regem a administração pública e compromisso com o interesse coletivo. O fortalecimento dos consórcios como instrumentos legítimos de cooperação federativa passa, necessariamente, pela observância estrita das etapas preparatórias, sob pena de comprometimento da validade e da eficácia das contratações.

Em síntese, o que se espera não é apenas que esses agrupamentos intermunicipais utilizem os mecanismos previstos na nova legislação, mas que o façam com responsabilidade, transparência e plena aderência aos princípios legais e constitucionais. O momento é de consolidação das boas práticas, e cabe aos órgãos de controle e aos próprios gestores públicos garantir que a inovação não se converta em risco.

Dimas Ramalho é Vice-Presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo

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