A Salmonella já é reconhecida como um dos principais problemas de saúde do mundo. Dados do estudo Global Burden Disease de 2017, um levantamento de problemas de saúde no planeta organizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), atribuem a este grupo de bactérias mais de 50 mil mortes e 95 milhões de infecções anuais em todo o mundo. Só este ano, um surto nos Estados Unidos varreu 25 estados. A bactéria causadora foi transmitida através de dragões-barbudos, animais exóticos que têm sido cada vez mais adotados como mascotes domésticas por lá. A relação afetiva baixou a guarda dos proprietários, criando a brecha para contaminações em série, que atingiram 44 pessoas e causaram 15 hospitalizações.
E há motivos para pensar que o número de contaminações e mortes pode crescer no futuro. A OMS já expressou sua preocupação com o crescimento da resistência a substâncias antimicrobianas em microrganismos causadores de doenças, um processo associado ao uso indiscriminado de antibióticos nos tratamentos de saúde e na criação animal, e que tem se intensificado nos últimos anos. As projeções sugerem que, até 2050, as doenças resistentes a agentes antimicrobianos poderão causar mais de 10 milhões de mortes anuais, se nada for feito para reverter esse quadro. Desse total, boa parte terá a Salmonella como causa.
Agora, um ambicioso projeto, denominado 10 k Salmonella Genome, está reunindo mais de 60 pesquisadores de todo o mundo para ampliar nosso conhecimento genético sobre o microrganismo. No total, o projeto já sequenciou mais de 10 mil diferentes cepas diferentes. Entre os integrantes estão dois grupos de pesquisadores da Unesp, das unidades de Araraquara e Botucatu. Os primeiros resultados do projeto foram publicados em dezembro na revista científica BMC Genome Biology.
À frente do projeto estão Jay Hinton, do Instituto de Ciências Ecológias, Veterinárias e de Infecções da Universidade de Liverpool, e Neil Hall, diretor do Instituto Earlham, um centro de pesquisas na Inglaterra. A equipe de pesquisadores coordenada por Hinton e Hall na Inglaterra desenvolveu uma metodologia mais acessível para a realização do sequenciamento, em larga escala, dos genes das diversas cepas do gênero Salmonella.
Os colaboradores de outros países enviaram amostras de Salmonella coletadas em suas regiões ao Reino Unido, onde foram sequenciadas. O professor de microbiologia Cristiano Gallina Moreira, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp Araraquara, é o representante do Brasil no projeto. Ele contou com a ajuda dos pesquisadores Rodrigo Tavanelli Hernandes, Terue Sadatsune e Adriano Martison Ferreira para selecionar cepas de Salmonella isoladas no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HCFMB).
Dados confirmam presença de cepa virulenta no Brasil
Ao todo, foram sequenciadas 49 cepas de Salmonella oriundas do HCFMB. Após a seleção, as bactérias foram ‘rompidas’ e seu material genético foi extraído e enviado para Liverpool, para que o sequenciamento fosse realizado. As informações genéticas agora estão disponíveis e poderão ser analisadas pela comunidade científica internacional.
Além de possibilitar comparações entre as cepas brasileiras e estrangeiras, o grande espaço de tempo entre as diferentes amostras isoladas no Hospital permite que se investiguem indícios de evolução nas bactérias locais. “A nossa amostra mais antiga é de 1998 e a mais recente, dentre o material que enviamos para Liverpool, é de 2017. É um período longo”, diz Rodrigo Hernandes, do Departamento de Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biociências de Botucatu.
Outra característica peculiar é que as amostras das cepas enviadas pelos pesquisadores unespianos foram extraídas e isoladas a partir do sangue de pacientes contaminados. Geralmente, as amostras de Salmonella são isoladas a partir das fezes, visto que estas bactérias geram infecções gastrointestinais e são eliminadas pelo trato digestivo. A presença delas no sangue, portanto, demonstra um grau maior de complexidade, pois significa que romperam a barreira do intestino e ocuparam a corrente sanguínea. Os motivos para tal fenômeno, segundo Cristiano Moreira, “ainda não foram explicados pela literatura da área” e também são objetos de estudos de seu grupo de pesquisa.
Um dos primeiros resultados observados a partir do sequenciamento dessas ‘amostras de sangue’ é a presença de bactérias de Salmonella da sorovariedade Typhimurium e tipo clonal ST313. Esta rara sublinhagem é mais resistente a antibióticos, possui uma taxa de mortalidade superior a 25% e, há menos de uma década, era reportada quase que exclusivamente na África Subsaariana. Num estudo de 2017, Moreira, ao lado de pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP Ribeirão Preto, já havia localizado amostras de ST313 no Brasil, fornecidas pelo Instituto Adolf Lutz de Ribeirão Preto e pela Fiocruz. Agora, a presença deste sorotipo na coleção do HCFMB recém-sequenciada confirma que ele circula no país em maior quantidade e já há algum tempo, e nesta forma de infecção diferenciada, a partir do sangue.
Combate à Salmonella é estratégico para o Brasil
No Brasil, a Salmonella foi a principal responsável pelos surtos de doenças de transmissão hídrica e alimentar (DTHA) de 2007 a 2019, nas ocasiões em que o patógeno responsável pelas infecções foi identificado. Essas bactérias foram a causa de 812 dos 3.275 surtos cujas origens foram identificadas, o equivalente a 24% do total. No mesmo período, ocorreram outros 5.755 surtos cujos agentes não foram desvendados, o que levanta a suspeita, entre as autoridades sanitárias, de que o estrago causado pelo microrganismo possa ser ainda maior.
Outro fato que alimenta a preocupação das autoridades médicas e sanitárias é o fato de que o Brasil é um dos principais produtores mundiais de proteína animal, exportando seus produtos para dezenas de países. “A Salmonella é um grande problema, principalmente para a indústria alimentícia, porque é uma bactéria amplamente distribuída na natureza. Qualquer animal, seja de sangue quente ou frio, pode ser um portador. Então, desde animais de produção até ‘pets’ podem representar risco”, diz Juliano Gonçalves Pereira, especialista em inspeção sanitária de alimentos e professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) de Botucatu. “E como ela está distribuída no ambiente, também é possível contaminar vegetais: um melão pode cair no chão e contaminar-se com fezes de um animal que a portava. É uma cadeia complexa, e todos esses fatores fazem com que essa bactéria seja um dos principais patógenos do mundo.”
Para diminuir os riscos, os governos criam regulamentações e promovem inspeções nas indústrias alimentícias, a fim de verificar as condições sanitárias dos produtos que vão ocupar as prateleiras dos supermercados. As próprias indústrias, por sua vez, também possuem programas de autocontrole, onde elas mesmas cuidam das análises. Entretanto, segundo Pereira, ainda assim é possível que haja contaminação em outras etapas do processo: “a contaminação pode vir da ração e das ‘camas’ onde os animais ficam, de roedores que habitam o local e têm acesso ao ambiente de produção e das aves silvestres que o sobrevoam. Até insetos podem carrear o patógeno”.
Outra estratégia adotada pela indústria para controlar a presença bacteriana na produção passa pela utilização de antibióticos para o tratamento dos animais envolvidos. O uso intensivo desses medicamentos, entretanto, é um dos maiores responsáveis pelo aumento da resistência bacteriana aos antimicrobianos no longo prazo. “Vários estudos mostram que, com essa pressão para a utilização de antibióticos na cadeia de produção, as bactérias estão se tornando resistentes”, diz Pereira.
Para ele, é por meio de projetos como o 10k Salmonella Genomes e outras iniciativas de pesquisa semelhantes que os cientistas podem encontrar formas de combater a contaminação por Salmonella, ao seguirem “estudando muito, dimensionando o real problema e propondo soluções de acordo com as novas descobertas”.
Moreira explica quais serão os próximos passos das pesquisas. “Temos agora uma coleção sequenciada que poderemos comparar com coleções prévias para investigar questões como ‘será que as amostras do Brasil têm fatores de virulências distintos de amostras de outros países?’. Será que essas cepas incomuns, que ganham a corrente sanguínea, têm alguma coisa diferente? Acho que é mais ou menos isso que os pesquisadores vão buscar a partir de agora.” O microbiólogo já está conduzindo estudos baseados nesses sequenciamentos, entre eles uma tese de doutorado com enfoque na comparação das cepas de Botucatu com as de outros países. “Agora vem a parte mais difícil de se fazer pesquisa no Brasil: obter o fomento para viabilizar estes estudos que vão gerar abordagens mais profundas e, consequentemente, mais significativas para a sociedade.”
Fonte: Jornal da Unesp