Coluna Dimas Ramalho

Vigiar e punir, com transparência e responsabilidade

Uma pesquisa nacional publicada em abril trouxe à tona uma constatação alarmante, mas já percebida por qualquer cidadão que transita pelas grandes cidades do país: a violência e o crime são hoje a principal fonte de aflição do brasileiro. Segundo o levantamento da Quaest, 29% da população manifestam preocupação com o tema –um aumento de três pontos percentuais em relação à pesquisa realizada em janeiro.

A falta de segurança voltou a ganhar um papel central no debate público e vem moldando políticas, comportamentos e decisões governamentais. Assim, não surpreende que o Estado busque alternativas tecnológicas para responder aos desafios impostos pela criminalidade urbana. Entre essas alternativas, destaca-se o uso crescente de câmeras com tecnologia de reconhecimento facial.

Cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Belo Horizonte têm ampliado o uso dessa ferramenta, que promete agilidade, precisão e capacidade de resposta mais rápida às ocorrências. Essas câmeras, geralmente instaladas em pontos estratégicos, como estações de metrô, centros comerciais, vias movimentadas e entradas de grandes eventos, são conectadas a bancos de dados das forças de segurança pública, permitindo a identificação em tempo real de pessoas procuradas pela Justiça ou envolvidas em investigações criminais. Trata-se de uma inovação que, sob a ótica da eficiência, possui um apelo evidente: é uma forma de modernizar o combate ao crime, de antecipar ações policiais e de ampliar o alcance do olhar estatal em espaços urbanos cada vez mais complexos e dinâmicos.

Há, com efeito, resultados promissores. Na Bahia, por exemplo, um dos estados que mais investiram na vigilância por câmeras, o uso dessa tecnologia resultou, desde 2019, na prisão de quase 2.000 foragidos. Autoridades e especialistas em segurança pública apontam que a presença das câmeras pode inibir a prática de delitos, além de permitir que a atuação policial se torne mais precisa, evitando deslocamentos desnecessários e aumentando a eficácia das operações. A promessa de uma cidade mais segura, vigiada por olhos eletrônicos que jamais piscam, parece, à primeira vista, a resposta ideal para uma sociedade, compreensivelmente, ansiosa por segurança.

No entanto, os riscos associados ao reconhecimento facial não podem ser ignorados nem relativizados. Diversos estudos conduzidos por instituições independentes e especialistas em direito digital e tecnologia têm apontado falhas importantes nesses sistemas, especialmente relacionadas à ocorrência de falsos positivos. Os algoritmos, por mais avançados que sejam, não estão imunes a erros, e esses erros não são distribuídos de maneira aleatória.

Pessoas negras e indivíduos de áreas periféricas têm sido, de maneira desproporcional, alvos de identificações equivocadas, o que revela um viés nos dados utilizados para o treinamento dessas inteligências artificiais. Em outras palavras, a tecnologia, em vez de neutralizar desigualdades históricas, pode acabar por reforçá-las, institucionalizando práticas discriminatórias sob o manto da eficiência técnica.

Outro aspecto preocupante é o vácuo legal em que se encontra o uso dessa tecnologia. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) estabelece diretrizes para o tratamento de dados sensíveis — como imagens e características biométricas —, mas não entra no mérito do uso das tecnologias de vigilância como medida de segurança pública. Na prática, isso significa que não há regras claras sobre armazenamento das imagens, prazos de retenção, auditorias independentes ou mecanismos de responsabilização em caso de uso abusivo. Já passa da hora, portanto, de o Congresso Nacional formular, debater e aprovar um marco legal específico sobre o tema.

O poder público tem o dever de buscar soluções inovadoras para os problemas complexos que afligem a sociedade, como é o caso da violência urbana. No entanto, esse dever deve vir acompanhado de responsabilidade, cautela e profundo respeito aos direitos individuais. O reconhecimento facial pode, sim, contribuir para o enfrentamento da criminalidade, desde que seja utilizado com absoluta transparência em seus objetivos, com proteção rigorosa das imagens gravadas e com garantias efetivas de que não haverá reprodução de preconceitos raciais, sociais ou de gênero em suas identificações.

A segurança pública não pode ser construída à custa da cidadania. É possível — e necessário — compatibilizar tecnologia e democracia, eficiência e direitos humanos, inovação e justiça. O sucesso do combate ao crime no Brasil dependerá, em grande medida, da nossa capacidade de equilibrar esses princípios em benefício de todos.

Dimas Ramalho é conselheiro-corregedor do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

O calor que derrete a educação brasileira: Por Dimas Ramalho

O calor extremo não é mais uma anomalia passageira. Na era do aquecimento global, ele veio para ficar –atravessando estações, invadindo cidades, transformando os hábitos e moldando o curso da vida cotidiana. Nas escolas brasileiras, essa nova realidade climática representa muito mais do que um incômodo. Trata-se de um obstáculo direto ao aprendizado. A equação é simples: à medida que o termômetro sobe, o desempenho dos alunos cai.

Estudantes suando sob o uniforme, professores interrompendo as explicações para abrir janelas que pouco refrescam, ventiladores que apenas reviram o ar quente e denso –tudo isso compõe o retrato do cotidiano de milhares de salas de aula pelo país. Em ambientes onde o desconforto térmico prevalece, o conteúdo, por mais relevante que seja, não encontra espaço para se fixar, a irritabilidade toma o lugar do interesse.

As estatísticas confirmam esse quadro alarmante. Um levantamento recente feito pelo Centro de Inovação para a Excelência das Políticas Públicas revelou que apenas 33% das salas de aula das escolas públicas brasileiras são climatizadas. O dado, extraído do Censo Escolar organizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, considera climatizados os ambientes que contam com ar-condicionado, aquecedor ou climatizador.

O dado geral, entretanto, esconde enormes discrepâncias regionais. Se olharmos para o estado de São Paulo, centro econômico do país, a situação é ainda mais desconcertante. Somando as escolas estaduais e municipais, só 9% dos espaços de ensino são climatizados.

Mas as estatísticas não param por aí. Outro estudo recente, produzido pelo Instituto Alana e pelo MapBiomas, revelou que em um terço das capitais brasileiras ao menos metade das escolas –públicas e particulares– estão situadas em regiões que apresentaram desvios de temperatura de pelo menos 3,5ºC acima da média urbana.

São estabelecimentos de ensino situados nas chamadas “ilhas de calor”, áreas urbanas densamente ocupadas, dominadas pelo concreto e pelo asfalto e com pouca vegetação. Nessas regiões, as altas temperaturas não são um fenômeno pontual, mas uma presença constante, transformando as escolas em ambientes hostis para o aprender e o ensinar. Essa realidade insalubre afeta as vidas de cerca de 2,5 milhões de crianças e adolescentes, em sua maioria oriundos das camadas mais vulneráveis da sociedade.

Diante dessa soma de fatores, a resposta das autoridades governamentais precisa ser rápida e eficaz. Climatizar as salas de aula não é uma questão de luxo, mas de dignidade. Não se trata apenas de proporcionar algum conforto, mas de garantir condições mínimas para que todos os alunos, independentemente de sua origem ou condição social, possam aprender.

Diversos estudos já demonstraram que o calor excessivo, ao prejudicar a concentração, a memória e a saúde física e mental dos alunos, afeta diretamente o aprendizado. Uma análise feita por pesquisadores do Banco Mundial utilizando dados da Prova Brasil mostrou que o aumento de dias quentes foi responsável por uma queda de desempenho nos exames de matemática e português.

Com o fim do período de verão, estamos no momento ideal para que governos de todas as esferas iniciem uma mobilização pela climatização das escolas. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo vem cobrando diagnósticos e planos concretos dos jurisdicionados. Não podemos esperar o próximo recorde de temperatura para começar a agir.

A adaptação climática das salas de aula é uma necessidade incontornável dos tempos atuais. É hora de fazermos da educação uma prioridade não apenas nos discursos, mas na criação de um ambiente propício ao aprendizado, em que a temperatura seja o menor dos desafios.

Dimas Ramalho é conselheiro-corregedor do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo

Tribunal de Contas do Estado de SP persegue dinheiro público aplicado pelo terceiro setor

Em decisão inédita, corte paralisa contrato de OS da saúde com empresa

Os Tribunais de Contas fiscalizam todas as espécies de ajustes firmados entre a Administração Pública e as entidades do terceiro setor. Contratos de gestão, termos de fomento e outros instrumentos de cooperação estão indiscutivelmente sujeitos às competências dos organismos de controle externo.

Mais recentemente, na sessão de 26 de fevereiro de 2025, o Plenário do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP), ainda que em sede cautelar, ampliou seus exames, deixando de se concentrar apenas nas relações entre o poder público e as entidades, para alcançar também os contratos pactuados entre estas e terceiros.

Recordo que, na ADI 1.923, O Supremo Tribunal Federal –ao estabelecer um verdadeiro marco regulatório do terceiro setor– fixou a interpretação de que tais instituições paraestatais não estão imunes ao controle dos Tribunais de Contas e à supervisão do Ministério Público.
Decidiu, ainda, que, embora elas não estivessem obrigadas a observar a lei de licitações, deveriam elaborar e seguir um regulamento de compras próprio coerente com o núcleo essencial do art. 37, caput, da Constituição da República.

Por exemplo, as compras e aquisições dessas organizações deveriam observar preceitos elementares de legalidade, transparência, moralidade, isonomia e impessoalidade, objetivando-se, sobretudo, a vantagem econômica da avença.
Não é possível admitir, assim, que organizações sociais e entes congêneres adquiram, com recursos do erário, bens e serviços de empresas de propriedade de seus diretores ou de parentes desses. Também é inadmissível que os contratos sejam formalizados sem um procedimento mínimo capaz de garantir uma escolha sem favorecimentos e com preços compatíveis com o mercado.

Todo esse lastro decisório fixado pela jurisdição constitucional fundamentou a intervenção inédita da Corte de Contas paulista em procedimento de contratação efetivado por organização social, que tramita no âmbito do TC-004232.989.25-1.

No caso concreto, a entidade CEJAM – Centro de Estudos e Pesquisas “Dr. João Amorim” objetivava, por meio de procedimento de seleção, contratar empresa para prestação de serviços médicos em unidades de saúde do município de São José dos Campos, onde mantém dois contratos de gestão com a prefeitura. Contudo, foi constado, desde logo, que o processo de escolha não revelou as justificativas da avaliação operacional das participantes, faltando com o dever de transparência e impessoalidade. Esse fato é indicativo forte de eventual direcionamento da contratação, impedindo, adicionalmente, a interposição de recursos com potencial revisor.

Nesse contexto, com base no poder geral de cautela – também reconhecido pelo Supremo aos Tribunais de Contas – expedi, na condição de relator, cautelar para suspender os trâmites de contratação e, caso esta já houvesse se concretizado, notifiquei a entidade para que apresentasse justificativas em 48 horas e suspendesse eventuais pagamentos. Na sessão imediatamente posterior, o Plenário do TCESP, ciente da formalização do contrato, converteu a notificação para sustação de pagamentos em cautelar.

Não se pode esquecer que as entidades do terceiro setor recebem repasses provenientes do erário e que esse dinheiro não é despido de sua natureza originária, atraindo a competência do Tribunal de Contas. Como fica claro, a decisão inova ao perseguir os diferentes caminhos traçados pelos recursos públicos.
Por fim, as entidades do terceiro setor não possuem finalidade lucrativa e, em complemento à atividade estatal, prestam serviços de notório interesse de toda a sociedade, razão pela qual devem ser intransigentes em seus mecanismos de integridade a contribuir com a eficiente aplicação das verbas recebidas.

O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, por sua vez, está atento à atuação dessas entidades e, exercendo as prerrogativas que o constituinte lhe confiou, está disposto a abrir fronteiras no controle de contas para tutelar o correto emprego do dinheiro público, onde quer que esteja.
Dimas Ramalho é Conselheiro-Corregedor do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

Dimas Ramalho

Dimas Ramalho: “Deixe ao sucessor o município que você gostaria de ter encontrado”

O fim do período eleitoral representa também o início de um outro momento capital da vida política do país: a transição entre os governos que saem e aqueles que entram.

Se a alternância de poder é um dos fundamentos da democracia, a passagem de bastão ordenada, sem perda de ritmo, de continuidade e de comando administrativos constitui o seu complemento necessário. Trata-se do ato derradeiro de um ano já repleto de exigências legais para os prefeitos: para que os futuros gestores encontrem as finanças em ordem, aqueles que estão deixando o cargo precisam seguir uma série de normas nesse período, sobretudo aquelas contidas na Lei de Responsabilidade Fiscal.

Entretanto, a transição governamental, apesar de toda a sua importância, é algo relativamente novo no ambiente institucional do país. A primeira passagem organizada de governos ocorreu somente em 2002, entre os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Regulado pela lei 10.609/02 e pelo decreto 7.221/10, esse rito se tornou, desde então, um modelo a ser seguido por todos os gestores públicos.

Em linhas gerais, a transição nada mais é do que o processo pelo qual a gestão eleita, mas ainda não empossada, tem acesso a todas as informações necessárias para que não haja sobressaltos ou interrupções das atividades administrativas e da prestação de serviços públicos, em especial aqueles essenciais à população como saúde, educação e assistência social.

Para cumprir todas essas tarefas de forma rigorosa e transparente, o primeiro passo é a constituição de uma equipe de transição. Ela deve ser formada, prioritariamente, por especialistas e técnicos ligados tanto à gestão que se encerra como à que começará. Recomenda-se também que todas as ações sejam formalizadas. Dessa forma, as entregas de documentos devem ser feitas por meio de ofícios e as reuniões registradas em atas.

Não são poucos os dados que precisam ser levantados para que a equipe da futura gestão possa ter um panorama completo do cenário econômico e institucional do município. Destacam-se, por exemplo, as informações referentes à situação financeira, como os demonstrativos dos saldos disponíveis, dos restos a pagar e das obrigações de longo prazo. Nesse tópico, também é fundamental listar os valores médios mensais recebidos a título de transferências constitucionais, o inventário de dívidas e haveres, e a comprovação de regularidade com a previdência.

Vale lembrar que o novo gestor receberá um Plano Plurianual vigente, inclusive a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2025 já sancionada, com programas, projetos, atividades, metas e prioridades da gestão que termina. Ele, portanto, precisa estar familiarizado com o que foi programado anteriormente, até que venha a elaborar os novos instrumentos de planejamento com base em seu plano de governo.

A futura administração precisa, ainda, estar a par de todos os contratos de execução de obras, consórcios e convênios, bem como da relação atualizada dos bens patrimoniais e dos bens de consumo existentes no almoxarifado.

No plano das políticas públicas, deve-se fazer um levantamento das principais ações, projetos e programas em execução, mas também daqueles interrompidos, finalizados ou que aguardam a sua implementação, para que não ocorram interregnos. A continuidade de serviços, obras e outras melhorias necessárias é uma forma de respeito à população e à supremacia do interesse público.

Infelizmente, nem sempre esse ritual republicano é devidamente respeitado. Por questões partidárias ou até picuinhas pessoais, alguns municípios acabam enfrentando dificuldades na transição, o que constitui uma enorme falta de respeito com o resultado das urnas.

Não importa se o futuro gestor é um aliado ou um adversário político, o prefeito prestes a terminar o mandato deve deixar para o seu sucessor um município nas condições que ele desejaria ter recebido. Na política, como na vida, faça aos outros o que você gostaria que fizessem com você.

Dimas Ramalho é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

As prefeituras e a fiscalização do terceiro setor

Em meados da década de 1990, foram lançadas as bases da reforma do Estado brasileiro, marcado por ineficiências e excessiva burocratização. Em linhas gerais, esse projeto buscava adaptar e transferir os conhecimentos gerenciais desenvolvidos no setor privado para a esfera pública, a fim de tentar aumentar a capacidade estatal de governar com eficácia e qualidade.

Um dos elementos-chave dessa mudança de paradigma foi a inserção do terceiro setor no âmbito dos serviços públicos essenciais e não exclusivos, como saúde, educação, cultura e tecnologia. O modelo se expandiu rapidamente. Hoje, as organizações da sociedade civil atuam nos três níveis de governo e ocupam um espaço significativo nas mais diversas áreas.

Esse crescimento tornou a análise dos repasses públicos para as entidades do terceiro setor uma das atribuições mais relevantes dos Tribunais de Contas. Os valores envolvidos falam por si. Tomando apenas o estado de São Paulo, o governo estadual e as prefeituras –com exceção da capital– transferiram, em 2023, nada menos que R$ 40,8 bilhões às organizações privadas sem fins lucrativos.

A fiscalização dessas atividades, contudo, não cabe apenas aos Tribunais de Contas. Os municípios têm um papel tão ou mais importante a exercer, por meio do controle interno. Tal dever é consagrado em uma série de leis, da Constituição Federal ao Marco Regulatório do Terceiro Setor.

Em outras palavras, se um governante decide executar determinada política pública por meio do terceiro setor, ele tem a obrigação legal de criar instrumentos que garantam que os recursos serão aplicados conforme os termos pactuados.

O que se observa no dia a dia do Tribunal de Contas do Estado São Paulo (TCESP), porém, é que muitas prefeituras têm, no mínimo, negligenciado essa obrigação. Embora os mecanismos de vigilância interna até existam no papel, com frequência servem apenas para inglês ver. Assim, a Corte de Contas, que deveria ser o último elo da cadeia de controle e fiscalização, não raro se converte no único.

São costumeiros os casos de falhas nas prestações de contas das entidades. O resultado se vê nas reiteradas reprovações de parcerias, que terminam por gerar multas e até a devolução dos recursos. Entretanto, por mais que o tribunal cumpra a sua função, quando se atinge esse ponto, o estrago muitas vezes já está feito. Os serviços essenciais que não foram prestados corretamente, a política pública que deveria ter sido implementada e não foi –nada disso pode ser reparado.

Em 2022, uma operação conjunta do TCESP, do Ministério Público e do Ministério Público de Contas analisou 67 parcerias firmadas na área da saúde com municípios e o governo estadual, totalizando cerca de R$ 6,7 bilhões. A fiscalização apontou problemas em nada menos que 60% delas, e recomendou a devolução de quase R$ 70 milhões.

Nas sessões semanais do tribunal, nos deparamos com inúmeros casos em que gestores públicos emitem pareceres avalizando gastos impróprios, sem qualquer relação com o objeto da parceria, quando não imorais ou ilegais. Em processos relacionados a contratos de gestão de unidades de saúde, as auditorias frequentemente encontram pagamentos de serviços e horas extras que extrapolam os limites do tempo e do espaço.

Há também situações em que a administração pública simplesmente distorce a realidade. Recentemente, o TCESP foi induzido a erro por um parecer de uma prefeitura, que afirmou não ter recebido a prestação de contas da entidade contratada. Isso gerou sanções que depois tiveram de ser anuladas em ação de revisão, para que não se penalizasse a organização social injustamente. A lista de problemas poderia se prolongar.

Já está mais do que na hora de mudarmos esse estado de coisas. Para isso, é crucial que os prefeitos que assumirão no ano que vem estejam mais comprometidos com o dever de fiscalizar as entidades do Terceiro Setor, como determina a lei. A população e os cofres públicos agradecem.

Dimas Ramalho é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

O Brasil na crise do clima por Dimas Ramalho

Chuvas apocalípticas no Rio Grande do Sul, secas extremas no Pantanal e na Amazônia, inundações recordes em países da Ásia e da Europa, ondas de calor mortíferas nos quatro cantos do mundo. São gritantes os sinais de que algo está profundamente errado no clima planetário.

Essa percepção, hoje, é mais clara do que nunca, como mostram duas recentes pesquisas de opinião sobre o assunto. De acordo com um levantamento do Instituto Datafolha, nada menos que 97% dos brasileiros afirmam perceber no dia a dia que o planeta vem passando por mudanças climáticas. Outra pesquisa, essa de âmbito mundial e capitaneada pela ONU, mostra que, dentre 77 países pesquisados, o Brasil é o sétimo em termos de preocupação com o clima.

Nem todo mundo entende, porém, que por trás desse fenômeno alarmante está a mão do homem. Após décadas de estudos e medições, não resta dúvida de que a causa do aquecimento global são os gases do efeito estufa emitidos por seres humanos, a maior parte deles proveniente da queima de petróleo e seus derivados.

Com a elevação da temperatura média do globo, tornam-se mais frequentes os chamados eventos climáticos extremos, com consequências tremendas para as populações humanas e os ecossistemas naturais. Segundo a pesquisa Datafolha, 77% da população brasileira vivenciou recentemente algum evento desse tipo.

A tragédia que atingiu boa parte do Rio Grande do Sul entre o fim de abril e o início de maio se encaixa nessa categoria. Centenas de municípios receberam em dias o volume de chuva de meses. Em Caxias do Sul, por exemplo, o acumulado de maio foi nada menos que seis vezes a média histórica. O rio Taquari, que corta parte do estado, subiu inacreditáveis 14 metros, deixando as cidades no caminho literalmente submersas. As águas do Guaíba invadiram Porto Alegre e uma parte considerável da capital ficou alagada por semanas.

Os números finais correspondem a um cenário que é difícil não descrever como sendo de guerra: mais de 2 milhões de pessoas afetadas; 600 mil desabrigados; ao menos 170 mortos e 80 desaparecidos.
Já o Pantanal vive o drama inverso. O bioma, conhecido por ser a mais vasta planície alagada do planeta, vem sendo castigado por uma estiagem drástica. Para dar uma ideia da grandeza do problema, basta dizer que o rio Paraguai, o principal da região, atingiu o nível mais baixo em 60 anos. Piora tudo o fato de que, com a seca, vem o fogo. O mês de junho registrou o maior número de focos de queimadas desde 1998, quando se iniciaram os registros.

Aqui, novamente, aparece a mão humana. Segundo especialistas, esses incêndios nada têm de naturais. A quase totalidade deles decorre de ações intencionais, como a limpeza de pastos ou a queima de algum material, que terminam saindo do controle e se alastram pelos campos ressequidos.
Por mais que os efeitos da mudança climática venham ficando cada dia mais evidentes no planeta, enfrentar as suas causas tem-se mostrado uma tarefa imensamente complexa. A principal razão é que reduzir drasticamente as emissões de gases do efeito estufa implica uma mudança radical na matriz energética global, ainda amplamente baseada no petróleo.

Nessa verdadeira corrida contra o tempo, o Brasil desponta de maneira singular. Por aqui, as principais fontes de poluição não provêm, como nas outras grandes economias do mundo, de atividades industriais e da queima de combustíveis fósseis, mas do desmatamento.
A floresta derrubada libera na atmosfera todo o carbono armazenado na madeira, nas folhas e nas raízes quando é queimada ou apodrece sobre o solo. Já a atividade pecuária, além de relevante indutor do desmatamento na Amazônia, libera, por meio da digestão dos ruminantes, o metano, um dos gases que mais potencializam o efeito estufa.

Essa circunstância confere ao Brasil uma vantagem comparativa no necessário e inadiável esforço mundial de redução das emissões. Em outras palavras, basta controlar o desmatamento e recuperar as pastagens degradadas para que a contribuição nacional à emergência climática despenque.

Há uma certa banda do agronegócio, entretanto, que ainda pensa com a cabeça do passado. Valendo-se de uma lógica predatória, defendem que o desmate é necessário para expandir plantações e pastos. Isso, porém, não passa de um mito. A verdade é que não existe incompatibilidade entre o combate ao aquecimento global e a produção agropecuária. A mudança climática, na verdade, é o grande vilão do agro, pois vem alterando os padrões de chuvas e impactando diretamente o resultado das safras.

Hoje, felizmente, boa parte dos produtores já entendeu isso, e vêm investindo no aumento da produtividade no campo e ampliando a chamada agricultura de baixo carbono. Um agronegócio com consciência ambiental combinado a um combate firme do desmatamento por parte dos governos forma uma aliança poderosa, que beneficiará o Brasil e o mundo.

Dimas Ramalho é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo

No artigo desta semana, Dimas Ramalho destaca “O vaivém da fome”

De todas as divisões que atravessam a sociedade brasileira, a mais cruel e indigna é, sem dúvida, aquela que separa os que têm o que comer daqueles que passam fome. Se historicamente a chaga da fome pode ser explicada por nossos profundos problemas socioeconômicos, o fato de persistir com tanta força até hoje soa paradoxal: o país em que milhões não conseguem alcançar a nutrição básica diária é o mesmo que propagandeia alimentar o planeta com suas safras recordes.

Não faz muito, houve um momento em que essa tragédia nacional parecia próxima de ser superada. Infelizmente não foi o que aconteceu. A grave crise econômica da década passada e a pandemia de Covid-19 fizeram com que parte considerável desses avanços fosse perdida. Hoje, depois de alguma recuperação nos últimos anos, nos encontramos como na imagem do copo meio cheio, meio vazio –ou melhor, do prato.

Segundo dados da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) divulgados recentemente pelo IBGE, o Brasil tinha, em 2023, cerca de 64 milhões de pessoas morando em domicílios classificados com algum grau de insegurança alimentar. Esse enorme contingente vivia em 21,6 milhões de domicílios, os quais correspondiam a 27,6% do total de habitações do país à época.

Trata-se –e esse é o prato meio cheio– de uma redução significativa frente ao levantamento anterior, relativo ao período 2017-2018, quando a insegurança alimentar atingiu a indecente proporção de 36,7% dos domicílios do país.

Por outro lado, o prato meio vazio é o fato de que não apenas quase 3 em cada 10 moradias brasileiras enfrentam algum grau de insegurança alimentar como ainda nos encontramos numa situação pior do que há uma década, quando esse índice era de 22,6%.

O conceito de insegurança alimentar utilizado pelo IBGE divide-se em três níveis e considera tanto a quantidade como a qualidade da comida que é posta na mesa. O primeiro nível, denominado leve, refere-se à preocupação ou à incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro. Nessa condição, a qualidade da alimentação pode ser afetada para não comprometer a quantidade. A moderada, por sua vez, alude a modificações nos padrões habituais da alimentação entre os adultos de um domicílio concomitante à restrição na quantidade de comida.

Já a insegurança alimentar grave caracteriza-se pela ruptura do padrão usual de alimentação, com comprometimento da qualidade e redução da quantidade de comida de todos os membros da família, inclusive das crianças. É a fome. No ano passado, de acordo com o IBGE, 8,7 milhões de brasileiros enfrentavam essa situação obscena.

Em “Quarto de Despejo”, o diário em que Carolina Maria de Jesus narra a dura rotina numa favela paulistana nos anos 1950, a catadora de papel escreve que a tontura da fome é pior que a do álcool. “A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”. Buscando a sobrevivência própria e dos filhos nos lixos da metrópole, Carolina encontrou a cor da fome. Ela descobriu que todas as coisas –o céu, as árvores, as pessoas, os bichos – ficavam amarelas quando a falta de alimentos no corpo atingia o limite do suportável.

A experiência devastadora da fome também foi registrada por Nelson Rodrigues. O escritor descreve em suas memórias o horror que se abateu sobre sua família após a morte do pai e o fechamento do jornal que provia o sustento de todos. “Não tinha roupa ou só tinha um terno; não tinha meias e só um par de sapatos (…); e quantas vezes almocei uma média e não jantei nada?”. Nesse tempo de extremas privações, conta Nelson, ele chegou a transformar-se em outro. “Assim como não me reconheço na adolescência, também não me reconheço na fome. Durante aquele período, a fome apagou minha identidade. Eu não era eu mesmo”.

Em 2014, parecia que histórias como essas se tornariam em breve coisa apenas do passado. Naquele ano, o Brasil saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas, instrumento que avalia e monitora a situação alimentar em todo o mundo. Na metodologia da ONU, um país deixa de pertencer a esse grupo quando menos de 2,5% de sua população sofre com a falta crônica de alimentos.

Isso, claro, não aconteceu por acaso. Por trás dessa conquista civilizacional estavam décadas de políticas públicas consistentes e bem-sucedidas, como amplos programas de transferência de renda, incremento na merenda escolar e incentivos à agricultura familiar. De 2002 e 2014, por exemplo, o percentual de brasileiros considerados em estado de subalimentação caiu impressionantes 82%.

Mas a esperança durou pouco. A profunda recessão econômica dos anos seguintes fez com que, já em 2018, o Brasil voltasse a figurar no mapa da ONU. Esse quadro se agravaria ainda mais com a pandemia e a fragilização das políticas de segurança alimentar ocorrida em sequência. Apesar de tantos retrocessos, a melhora verificada pelo IBGE no ano passado traz um sinal auspicioso.

Josué de Castro, o homem que revolucionou o estudo da miséria no Brasil, disse uma vez que o primeiro direito humano é o de não passar fome. O país já mostrou que sabe como vencer o mal da insegurança alimentar; cumpre agora retomar esse caminho.

Dimas Ramalho é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo

Qual a extensão da sanção imposta pelo Tribunal de Contas ao terceiro setor?

O exame dos repasses públicos ao terceiro setor é, sem dúvida, uma das competências mais relevantes dos Tribunais de Contas. No caso da Corte de Contas Paulista, a importância da tarefa pode ser medida pelos vultosos montantes envolvidos. Segundo dados do “Painel do Terceiro Setor”, disponibilizado no site oficial do TCESP, Estado e Municípios transferiram, em 2023, nada menos que R$ 40,8 bilhões às entidades privadas sem fins lucrativos.
Naturalmente, tamanha quantidade de recursos exige do controle externo não apenas uma atuação diligente como também punição exemplar àquelas organizações que aplicam incorretamente as verbas públicas recebidas.
Nesse contexto, o art. 103, da Lei Complementar 709/93, a Lei Orgânica da Corte do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, prevê, em caso de irregularidade no uso do dinheiro público, a possibilidade de impedir que a entidade venha a receber novos repasses, até que se comprove a correção dos erros constatados. É a chamada pena de suspensão de novos recebimentos. O TCESP, inclusive, além de publicar no Diário Oficial, também divulga, no site institucional, a relação de entidades e órgãos proibidos de receber novos auxílios, subvenções ou contribuições.
A jurisprudência do Tribunal de Contas, todavia, sempre divergiu sobre a extensão da penalidade prevista no dispositivo legal citado.
Alguns julgadores compreendiam que a pena de suspensão ficava restrita à esfera de governo do órgão no qual se operou a malversação dos recursos. Ou seja, a vedação de novos recebimentos ocorreria somente em relação àquela que foi a Administração Pública prejudicada ou sancionadora. A entidade, então, poderia seguir recebendo novos recursos de outros Municípios ou mesmo do Estado, quando os valores contestados não tivessem origem estadual.
Tal entendimento aplicava, por analogia, os dispositivos previstos na Lei Geral de Licitação e Contratos – a então Lei nº 8.666/93 ou a atual Lei 14.133/21 – interpretados pela Súmula 51 desta Corte do seguinte modo: nos casos de impedimento e suspensão de licitar e contratar (artigo 87, III da Lei nº 8.666/93 e artigo 7º da Lei nº 10.520/02), a medida repressiva se restringe à esfera de governo do órgão sancionador.
Porém, na sessão do TCESP do dia 29 de maio, por maioria, essa tese foi superada. Prevaleceu então o argumento de que a vedação de novas transferências se estende a todos os órgãos jurisdicionados do Tribunal (TC-018907.989.23). Em outras palavras, a entidade do terceiro setor declarada impedida de auferir novos recursos, nos termos do art. 103, da Lei Orgânica – constando, portanto, da lista de apenados – não poderá receber repasses seja do Estado, seja dos municípios sujeitos às competências do organismo de controle externo estadual.
A tese preponderante reconheceu que os ajustes com o terceiro setor possuem regime jurídico específico, afastando assim a possibilidade de analogia com preceitos do diploma geral de contratações públicas, a Lei 8.666/93 e a Lei 14.133/21.
De fato, a legislação estabeleceu regulação específica para as Organizações Sociais, com procedimentos de seleção e contratação que não se equiparam aos processos licitatórios, permitindo ao Poder Público a pré-qualificação de entidades e a possibilidade de contratações com termos mais flexíveis e baseada em resultados pré-definidos.
Tais características singularizam a natureza das contratações com o terceiro setor, permitindo, nos termos constitucionais, que o legislador estadual possa suplementar o regime jurídico existente ao criar sanções particulares, como faz o art. 103 da Lei Orgânica desta Corte. Essa penalidade, portanto, pode ser aplicada em toda a sua potencialidade, de modo que a suspensão de novos repasses valha para todos os jurisdicionados da Corte de Contas. Contudo, isso não impede que, ante o possível impacto social da decisão e eventual retrospecto positivo da organização, por exemplo, o Tribunal decida por restringir o alcance da sanção ou por deixar de aplicá-la.
O posicionamento do colegiado do TCESP, como fica claro, se dá no sentido da proteção dos recursos públicos. Ora, como uma entidade que comete irregularidades em um determinado ajuste está propensa a repeti-la em outros, enquanto ela não promover a regularização, não demonstrará também a integridade necessária para receber novos repasses, independentemente da origem federativa dos valores.
Ao fim e ao cabo, o entendimento fixado pela Corte de Contas Paulista tem o mérito não só de fortalecer as competências do controle externo como também de reforçar a compulsoriedade da lista de entidades proibidas de receber novos repasses, mensalmente atualizada no site do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.
 
*Dimas Ramalho é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.