O prefeito de Botucatu, Fábio Leite, publicou nesta terça-feira (23) no Diário Oficial do Município um decreto que declara estado de calamidade pública após o temporal que atingiu a cidade ontem (22). A medida, no entanto, vem sendo contestada por especialistas e representantes da sociedade civil, já que não houve registros de destruição graves de bens públicos como estradas, pontes, mortes de pessoas ou de animais – requisitos normalmente associados a esse tipo de decreto.
Segundo a Prefeitura, o decreto se justifica porque os ventos teriam alcançado 106 km/h. Contudo, a informação não foi confirmada por nenhum órgão oficial de meteorologia. A justificativa apresentada pelo prefeito baseou-se apenas em uma avaliação visual através da Escala de Beaufort – um método empírico criado no século XIX e considerado obsoleto há décadas, desde a adoção de equipamentos modernos de medição meteorológica.
Em contato com a reportagem do Alpha Notícias, o Climatologista Professor Enzo Dal Pai, da Faculdade de Ciências Agronômicas (FCA) da Unesp-Botucatu, explicou que, na estação meteorológica instalada no Lageado, a rajada máxima registrada foi de 66 km/h, número muito inferior ao divulgado pela Prefeitura.
Contradições com dados nacionais
De acordo com levantamento conjunto do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), Sistema de Tecnologia e Monitoramento Ambiental do Paraná (Simepar),
Centro de Gerenciamento de Emergências Climáticas (CGE) e o Centro de Informações de Recursos Ambientais e de Hidrometeorologia (Epagri-Ciram) publicado pelo Climatempo ¹, as maiores rajadas de vento entre os dias 21 e 22 de setembro foram registradas nos Estados do Sul e do Centro-Oeste, além de algumas cidades paulistas. Botucatu sequer aparece entre os municípios com ventos mais intensos. Confira alguns registros:
116 km/h – Caarapó (MS)
107 km/h – Urupema (SC)
106 km/h – Santo Antônio da Platina (PR)
99 km/h – Bragança Paulista (SP)
98 km/h – São Paulo (Campo de Marte)
95 km/h – Piracicaba (SP)
92 km/h – Ourinhos (SP)
90 km/h – Avaré (SP)
86 km/h – Marília (SP)
83 km/h – Presidente Prudente (SP)
Na região, cidades como Bauru (87 km/h) e Avaré (90 km/h) registraram ventos mais fortes do que Botucatu.
Além disso, a Climatempo, referência nacional em meteorologia, informou no boletim que a passagem de uma forte frente fria sobre o Centro-Sul do Brasil provocou rajadas intensas em diversos estados, com alerta válido para os dias 21 e 22. Apesar disso, os dados oficiais não sustentam a narrativa de que Botucatu teria sido atingida por ventos de 106 km/h.
Comparação equivocada
Outro ponto que causa estranhamento é o uso, pela Prefeitura, de valores semelhantes aos de fenômenos extremos como Tornados. A National Geographic destaca que: “nos tornados, a velocidade do vento pode variar de 105 km/h a mais de 480 km/h” ².
Portanto, a prefeitura compara ao evento ocorrido ontem com um tornado ao afirmar que a velocidade dos ventos seria de 106 km/h. Portanto, sugere um cenário meteorológico muito mais grave do que realmente ocorreu.
O que houve de fato em Botucatu
Na cidade, os principais registros foram queda de árvores, placas de sinalização e fachadas de estabelecimentos. Embora esses danos possam causar transtornos pontuais, não se enquadram no nível de destruição que justifique um decreto de calamidade pública.
O que significa decretar estado de calamidade pública?
O Estado de Calamidade Pública, por sua vez, é decretado em situações de grande intensidade.
Ocorre quando o impacto do desastre é tão grave para a cidade e a capacidade de resposta do poder público local é comprometida que compromete severamente a capacidade de resposta da administração pública. Ou seja, a Prefeitura não consegue sozinha resolver os problemas provocados pelo desastre.
Essas ocorrências são marcadas por danos severos, incapacidade do ente local de lidar com os prejuízos e a necessidade de uma mobilização coordenada entre os governos municipal, estadual e federal.Para oficializar qualquer uma dessas condições, o governo municipal ou estadual deve emitir um decreto e registrá-lo no Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2iD). A solicitação é analisada pela Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec) do MIDR, que avalia a necessidade do reconhecimento federal. Caso aprovado, o município pode acessar recursos para socorro, assistência humanitária e recuperação de áreas atingidas.
Com a medida, o prefeito abre margem para flexibilizações orçamentárias e contratações sem licitação, o que reforça a necessidade de fiscalização e transparência na aplicação dos recursos públicos.
O que um prefeito pode fazer (legalmente, se houver calamidade real)
1. Gastos e orçamento
– Abrir créditos extraordinários (Lei 4.320/1964, art. 41, III) para ações emergenciais.
– Suspender metas fiscais e limites da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal – LC 101/2000, art. 65).
– Realocar recursos do orçamento municipal para enfrentamento da crise.
2. Licitações e contratos
– Dispensar licitações (Lei 14.133/2021, art. 75, VIII), desde que os gastos sejam comprovadamente ligados à calamidade.
– Fazer contratações emergenciais de empresas e serviços (ex: remoção de entulho, reconstrução de pontes, atendimento emergencial de saúde).
– Comprar bens e insumos sem processo licitatório (ex: cestas básicas, lonas, medicamentos).
3. Administração e serviços
– Contratar pessoal temporário para atender situações emergenciais.
– Determinar interdições de áreas de risco (ex: encostas, pontes, prédios instáveis).
– Mobilizar todos os órgãos da Prefeitura para atuação emergencial.
4. Apoio externo
– Solicitar recursos extras do Governo do Estado e da União.
– Acionar Defesa Civil estadual e federal.
O que um prefeito nãopode fazer (uso ilegal do decreto)
– Decretar calamidade sem base real: se não houver destruição de bens públicos, risco à vida ou colapso de serviços, o decreto pode ser considerado ato ilegal.
– Usar o decreto para justificar gastos sem relação com a emergência, como obras em locais não afetados.
– Dispensar licitação para contratos que não sejam emergenciais, favorecendo empresas indevidamente.
– Criar despesas permanentes (contratações de pessoal fixo, aumento salarial etc.) sob justificativa de calamidade.
– Manipular dados meteorológicos ou técnicos para simular gravidade maior do que a real.
O prefeito pode gastar e contratar com mais rapidez, mas somente para reparar danos reais e imediatos. Se usar o decreto para ampliar seus poderes administrativos sem justificativa técnica, pode responder civil, administrativa e criminalmente.
Possíveis ilegalidades e implicações
A publicação de um decreto de calamidade sem respaldo técnico pode configurar violação a diferentes normas legais:
# Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) – O artigo 65 prevê que estados de calamidade devem ser reconhecidos apenas em situações efetivas e devidamente comprovadas. Caso contrário, a flexibilização de metas fiscais e gastos públicos pode ser considerada irregularidade administrativa.
# Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) – O artigo 11 tipifica como ato de improbidade administrativa praticar ato visando fim proibido em lei ou diverso daquele previsto na regra de competência. Editar decreto de calamidade para justificar medidas financeiras indevidas pode se enquadrar nessa previsão.
# Código Penal, artigo 299 – Falsidade ideológica, se ficar comprovado que dados inverídicos foram apresentados como verdadeiros para justificar o decreto.
As implicações podem ir desde a anulação do decreto até ações civis públicas, perda de direitos políticos, responsabilização por improbidade e até investigação criminal contra o prefeito.
Possíveis consequências legais para o prefeito
1. Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992):
– Perda da função pública.
– Suspensão dos direitos políticos (3 a 10 anos).
– Multa e ressarcimento ao erário.
2. Crime de Responsabilidade (Decreto-Lei 201/1967):
– Cassação do mandato pela Câmara Municipal.
– Inelegibilidade.
3. Responsabilidade Penal (Código Penal, art. 299 – falsidade ideológica):
– Pena de 1 a 5 anos de reclusão se comprovado uso de informações falsas para justificar o decreto.
Diante das divergências entre os dados oficiais de meteorologia e a versão apresentada pela Prefeitura, especialistas e a população agora questionam: teria o decreto de calamidade em Botucatu sido precipitado – ou mesmo utilizado de forma indevida para abrir espaço a manobras administrativas?
A Rede Alpha continuará acompanhando os desdobramentos dessa situação e está a disposição do prefeito Fábio Leite para prestar seus esclarecimentos.
FONTES:
2. https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2024/07/qual-e-a-diferenca-entre-um-tornado-e-um-furacao-saiba-o-que-diz-a-nasa