Uma investigação baseada em documentos públicos, relatos de profissionais e pareceres de médicos e advogados revela que a Prefeitura de Botucatu mantém um modelo de contratação de médicos por meio de pejotização, subordinação de fato, e indícios de quarteirização, elemento que coloca em xeque a regularidade administrativa e a qualidade do atendimento nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e nos Pronto-Socorros do município.
Contratos e estrutura: o que mostram os documentos oficiais
No Portal da Transparência municipal, constam contratos celebrados com a empresa PROMEDSP, contratada para gerir escalas e fornecer médicos à rede municipal.
Os documentos mostram pregões e dispensas de licitação firmados para prestação de “serviços médicos”, abrangendo inclusive a organização de escalas.
Pejotização com cara de vínculo: o que dizem especialistas
Mesmo contratados como Pessoa Jurídica (PJ), os médicos afirmam que possuem:
- 1. Chefias e coordenações
- 2. Escalas fixas de trabalho;
- 3. Controle de jornada e horários fixos de entrada e saída, inclusive com desconto no salário sobre atrasos;
- 4. Cobranças diretas da gestão municipal;
- 5. Obrigatoriedade de buscar substitutos quando precisam faltar.
Indícios de quarteirização e quinteirização
Além da terceirização para a PROMEDSP, possa ter vínculo com outras empresas produzindo uma escalada de intermediários nas contratações dos profissionais, e consequentemente, reduzindo o valor dos plantões na ponta para os médicos — prática que especialistas chamam de quarteirização informal.
Relatos de profissionais indicam que a empresa intermediadora não exerce efetivamente a gestão operacional.
Segundo médicos, quem determina cobranças e rotina são chefias das próprias unidades ou de outras empresas que já faziam a gestão dessas unidades, e não a empresa terceirizada.
Além disso, no contrato, a prefeitura permite que a PROMEDSP, que por sua vez, faça subcontratações para outras empresas fazerem a escala.
Tudo isso, pode caracterizar uma cadeia complexa de repasses que dificulta a transparência e a fiscalização.
A quarteirização e quinteirização são criticadas por advogados e entidades médicas por aumentar ainda mais a fragilidade do vínculo trabalhista, diluir responsabilidades e dificultar a fiscalização.
Segundo artigo jurídico recente, esse modelo na saúde pública pode desrespeitar direitos médicos e alterar a natureza real da contratação.
Estudos sobre o tema publicados em revistas jurídicas, como a Consultor Jurídico (ConJur), afirmam que a quarteirização:
- – Dilui responsabilidades;
– Dificulta fiscalização;
– Fragiliza trabalhadores;
– Aumenta o risco de irregularidades administrativas.
Contradicação financeira: a empresa recebe mais, mas paga menos
A reportagem apurou que a PROMEDSP venceu procedimento licitatório (Pregão/PE e dispensas administrativas) para o serviço médico, com preços globais que, em termos contratuais, chegaram a ser superiores aos pagos à empresa anterior (Vannini & Delatim).
Contudo, médicos relatam que a remuneração efetiva por hora oferecida aos profissionais caiu em relação ao parâmetro anterior, e que a empresa passou a oferecer valores inferiores para novas vagas — situação que, na prática, inviabiliza remuneração compatível e submete médicos a condições mais frágeis e discriminatórias, em que médicos com a mesma função, com a mesma carga horária, tenham pagamentos diferentes.
Essa redução, afirmam, representaria uma desvalorização significativa e um risco à sustentabilidade financeira para quem “se formalizou como empresa”.
Embora a Prefeitura tenha contratado a PROMEDSP por um valor maior inicialmente, a estratégia agora parece reverter o ganho via “outsourcing” em prejuízo para os próprios médicos, que teriam menos retorno por hora trabalhada.
Esse quadro suscita questionamentos administrativos, como:
- 1. Por que um nova terceirizada contratada recebe mais da Prefeitura e repassa menos ao profissional médico?
- 2. Há falhas na especificação do edital ou na fiscalização do contrato?
- 3. Existe margem oportunista para lucro da intermediária à custa dos profissionais?
São perguntas que demandam investigação formal.
O que diz as Entidades Médicas e do Conselho Federal de Medicina
O Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) já manifestou-se criticamente contra a quarteirização médica, afirmando que ela
“diminui a transparência, fragiliza a responsabilidade profissional e precariza a relação de trabalho”.
Representantes do Conselho Federal de Medicina (CFM) também questionam a terceirização médica excessiva.
Em evento nacional, líderes do CFM declararam que:
“A precarização dos vínculos trabalhistas deve ser combatida para preservar a qualidade do serviço médico”.
O CFM já alertou sobre os prejuízos da “pejotização”. Em comunicado conjunto com o Conselho Regional de Medicina de Goiás (CREMEGO), afirmou que:
“Médicos contratados como pessoa jurídica, mas sem estrutura empresarial real, podem estar infringindo a legislação trabalhista e tributária.”
O Conselho Federal de Medicina (CFM) alerta para os riscos do modelo.
Segundo, José Carlos Duarte Ribeiro, da Câmara Técnica de Medicina do Trabalho do CFM:
“A pejotização excessiva tem levado à deterioração da qualidade dos serviços e à descaracterização da autonomia do profissional. É um fenômeno que prejudica médicos e pacientes.”
A Resolução CFM nº 1.980/2011 reforça que empresas médicas devem possuir estrutura, mais de um funcionário, registro e responsável técnico — o que nem sempre ocorre no modelo de intermediação usado por municípios. E isso pode ser irregular por parte dos médicos pejotizados.
O que dizem os médicos
A pejotização precariza saúde pública de Botucatu, afirmou um dos médicos ouvidos pela reportagem.
“Se temos que arrumar um substituto, por que terceirizar a escala, se a empresa contratada não tem nada para fazer?”, nformou um dos médicos do PS, que pediu para não ser identificado por receio de represálias.
“A empresa ganha mais da Prefeitura, mas oferece menos para o médico. Quem perde é o profissional e a população que fica sem atendimento digno”, desabafou angustiado um médico do Pronto Socorro Adulto, ouvido pela reportagem.
“Sou PJ só no papel; tenho escala fixa e sou cobrado como se fosse funcionário”, relatou outro médico da UBS.
O que dizem juristas e advogados trabalhistas
Para os justistas procurados pela nossa equipe de reportagem, trabalhar como PJ em regime tão rígido, configura uma forma de vinculação disfarçada, isso porque há claros, elementos que caracterizam vínculo empregatício.
Esses elementos caracterizam, segundo juristas, uma relação que se aproxima muito mais de emprego do que de prestação de serviço autônomo.
Segundo advogados trabalhistas, esse conjunto de elementos caracteriza subordinação direta, não eventualidade, onerosidade, e pessoalidade.
Esse tipo de situação pode colidir com a Súmula 331 do TST, que trata da terceirização.
A súmula afirma que “a contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços”, salvo no caso de trabalho temporário (Lei 6.019/74).
Além disso, o TST considera que, se há pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação direta, é muito impreciso classificar o vínculo, como terceirização legítima.
Se os médicos são tratados como funcionários (subordinados), mesmo formalizados como empresas, corre-se o risco de configurar fraude trabalhista para burlar direitos da CLT, direitos previdenciários e trabalhistas.
A Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) determina que o tomador de serviço (neste caso, a Prefeitura) pode ser responsabilizado por irregularidades trabalhistas quando há intermediação indevida e ausência de autonomia do contratado.
O advogado trabalhista Daniel Manfredini, especialista em relações profissionais na saúde, afirma em artigo publicado que:
“A pejotização é válida somente quando há plena autonomia técnica e administrativa. Quando há escala fixa e subordinação hierárquica, há forte tendência de reconhecimento de vínculo”.
Entenda quais são os requisitos que configuram o vínculo empregatício
- Subordinação: O trabalhador deve seguir as ordens, regras e controle do empregador, sendo inserido na hierarquia da empresa.
- Não eventualidade: O serviço é prestado de forma contínua e habitual, e não esporádica. A relação de trabalho não é por um curto período ou apenas para uma situação específica.
- Onerosidade: O trabalhador recebe uma remuneração (salário) em troca do seu trabalho.
- Pessoalidade: A prestação de serviço deve ser feita pela própria pessoa contratada, sem a possibilidade de se fazer substituir por outra.
- Pessoa física: O empregado deve ser uma pessoa natural, e não uma pessoa jurídica. A empresa do médico tendo apenas ele como funcionário e o próprio mantenedor, pode configurar uma pessoa natural.
Consequências do vínculo empregatício
Quando um vínculo empregatício é configurado, o empregador (e as empresas envolvidas, além da prefeitura) são obrigados a cumprir todos os direitos trabalhistas previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como:
- – Férias
– 13º salário
– FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço)
– Horas extras e adicionais (noturno, insalubridade, periculosidade)
– Vale-transporte
Riscos legais para a Prefeitura
A Prefeitura pode ser responsabilizada por:
- Fraude trabalhista (pejotização com subordinação);
- Responsabilidade subsidiária, caso médicos acionem a Justiça;
- Falhas de fiscalização do contrato;
- Irregularidade por quarteirização e quinteirização, vedada em diversos pareceres de tribunais de contas.
Advogados trabalhistas entrevistados classificam o modelo como “de alto risco jurídico” para o prefeito Fábio Leite e o vice-prefeito e secretário de saúde, André Spadaro.
Modelo que se repete da gestão do ex-prefeito Pardini
Em Botucatu, o modelo de contratação médica por pejotização não é novidade.
Segundo apuração da Rede Alpha, o mesmo formato que hoje gera precarização e denúncias de irregularidades em várias Unidades de Saúde do Município havia sido adotado na gestão anterior do então prefeito Mário Pardini — também sob coordenação do secretário de Saúde André Spadaro — quando a Prefeitura contratou a empresa Humanitar para assumir parte das escalas médicas.
Na época, médicos relataram as mesmas práticas: subordinação direta, escala fixa, cobranças por horário, necessidade de encontrar substitutos e ausência de vínculo público, apesar da rotina típica de servidor. O modelo, agora repetido com a empresa atual, demonstra que a Prefeitura mantém um padrão contínuo de terceirização e quarteirização, substituindo concursos públicos por contratos que fragilizam profissionais e comprometem a qualidade da assistência prestada à população.
Silêncio das autoridades
A equipe de reportagem procurou o prefeito Fábio Leite, o Vice-prefeito e secretário de saúde, André Spadaro e a secretária de Comunicação, Cinthia Al-Lage mas nenhum deles deu qualquer resposta sobre essa agrave situação enfrentada pelos médicos das Unidades Básicas de Saúde do município de Botucatu.
A equipe de jornalismo da Rede Alpha de Comunicação continuará acompanhando os desdobramentos de mais esta denúncia e fazendo as atualizações para a população.
Leia a matéria anterior sobre a Crise da saúde de Botucatu pelo link abaixo:
https://www.alphanoticias.com.br/medicos-denunciam-desvalorizacao-apos-troca-emergencial-de-empresa-na-saude-de-botucatu/
Foto: Redes Sociais