Haicai

Li em algum lugar que os samurais tinham uma tradição chamada ‘sepuku’, era um ritual de suicídio no qual antes da morte eles deveriam produzir ‘haicais’. Haicais são poemas mínimos nos quais a condensação poética é levada ao seu grau máximo. Penso que Jesus também fazia haicais. Ele não perdia tempo, não se permitia gastar energia com que não devia. Isso não significou uma vida sem graça e sem plenitude. Ao contrário, sempre vivo, levava a vida por onde passava.

Jorge Luís Borges, um escritor argentino, disse que “um homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo, ao longo dos anos em tudo que faz, desenha sua alma”. Vemos isso em Jesus, não é mesmo? Rubem Alves vai dizer que somos aquilo que consumimos. Talvez seja por isso que Jesus nos convidou a comermos e bebermos de sua carne e do seu sangue. Os mais literalistas terão sempre um problema para lidar com essa fala do Nazareno. Mas como escolhi a poesia, fico com a fala de Alves, de que com essa frase, Jesus nos convida a sermos como ele foi. Nesse sentido a história mítica de gênesis, no capitulo primeiro, no versículo trinta e um, Deus acabara de fazer tudo o que tinha para fazer e Ele mesmo viu que tudo que havia feito era muito bom. Sim Deus viu!

Talvez seja o convite para se parecer com Jesus. Aprender a olhar com os olhos de Deus, olhar o mundo à nossa volta. A arte de enxergar, de aprender discernir as coisas boas do mundo é um exercício que precisa
ser aprendido e aprimorado. Creio que os religiosos tenham mais dificuldades com esse procedimento. Eles gostam de fazer haicais focados na morte, no inferno, na dor e na ortodoxia. Eles produzem o pensamento de um paraíso que só vai ser encontrado depois que fecharmos os olhos aqui para este mundo.

Eu discordo, discordo porque Deus viu que tudo era muito, muito bom, e ele se referia às coisas daqui deste mundo. O que será que Deus viu? Hoje nas igrejas e na religião nos convidam a fechar os olhos. E muita gente tem feito isso. O pastor rouba a igreja, todo mundo faz de conta que não vê. O diácono abusa da criança e ninguém vê. O padre abusa do coroinha, dos adolescentes em confinamento, mas ninguém vê. O marido espanca a mulher mas os olhos da igreja estão fechados para dar a Deus adoração e pedir a sua benção. Os olhos estão fechados para muitas coisas, não enxergam nada. Jesus já havia falado que o pior cego é aquele que não quer ver.

Uns querem ouvir a voz como que um trovão, outros querem sentir arrepios como que um espirito o tocasse, outros querem chorar, mas as lágrimas não têm a ver com a dor, a morte, ou quem sabe a alegria do outro. A lágrima que buscam é a do frenesi dos olhos fechados. Eu escolhi abrir os olhos para ver. Ver quem sofre, quem chora, que padece. Isso não me faz melhor do que ninguém, talvez apenas mais humano. Escolhi abrir meus olhos para ver o mar, o céu, os peixes, as montanhas e diante deles ficar pasmo e atônito com maravilha da criação de Deus. Escolhi abrir também meus ouvidos para ouvir os sons que a Criação emite. O som das ondas do mar, das montanhas e dos passarinhos que fazem das árvores suas moradas. Escolhi ouvir meus amigos e amigas, irmãos e irmãs. Deus se manifesta neles. Em cada palavra, em cada imperfeição humana, cada abraço, cada lágrima. Escolhi abrir os olhos para ver quantos bons artistas temos no Brasil e no mundo. Abri meus olhos para a poesia de Fernando Pessoa, Ariano Suassuna, Rubem Alves, Mario Quintana, Cecilia Meireles, etc. A brevidade da vida me fez perceber que não tenho tempo para desperdiçar com a ortodoxia da vida e da religião. Escolhi a beleza, o belo, quero fazer meus haicais, mas eles só podem serem feitos de olhos abertos.

@Renato Ruiz Lopes

Sobre Régis Vallée

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